Da santidade do corpo e do pecado da alma: uma história revolucionária


 


Corpo e alma: a nossa natureza habita nesta composição. Mas, viveríamos nesta dualidade intransponível? Nos ensinam desde sempre que o nosso corpo é corruptível e por isso é fonte do pecado e que à nossa alma cabe a honra da sacralidade, por ser o fôlego divino em nós, nos chamando à responsabilidade da santidade. Por isso, mortifiquemos o corpo e nos concentremos na alma, àquela que é capaz de nos levar à imortalidade! Porém, o título do texto parece querer nos levar em outra direção. E nos orienta a orientar uma inversão. O corpo é sagrado, enquanto o pecado se avizinha da alma. Mas, antes de tentar descontruir o que falo acima e me atirar à fogueira da inquisição, te convido a um passeio amistoso por entre os conceitos de santidade e pecado. No hebraico - a língua sagrada pela qual foi escrita a Bíblia – a palavra santidade tem raiz na palavra santo, e que é escrita assim: קָדַשׁ. Transliterado, fica desta forma: Kadosh. E o sentido desta palavra muito nos ensina. Kadosh é aquilo que é “separado”, colocado “à parte”, “diferente”. Nosso corpo é sagrado porque sua sacralidade reside no fato de que ele é único, e que por isso é diferente e separado dos demais. A fenomenologia da percepção ressalta esta importância do corpo, e por isso, nos diz Foucault, em O corpo utópico: “nosso corpo é o ponto zero do mundo”. A partir do corpo partimos e chegamos. Somos e também estamos. Ele nos faz existentes! E por isso carrega a nossa identidade e nos é uma referência ontológica. A partir do corpo, nós sentimos. E como sentimos! O nosso corpo é continuamente alvejado por dardos que vem de todas as direções. Ele é a nossa referência de existência, mas é também, ponto de partida para a resistência. O corpo da mulher é muito mais atingido como alvo, pois hipersexualizam o nosso corpo e nos têm como objetos de desejos, ao mesmo tempo que nos ensinam que somos frágeis e que precisamos da “proteção” do corpo masculino, bem como, da sua “aceitação”. E por isso, desde a tenra infância nossa própria família nos prepara para sermos um corpo feminino dócil e agradável. Agora entendem que os tantos lacinhos e babados, antes de serem apenas um cuidado estético é a implementação da ideologia de que a mulher precisa necessariamente ser bela aos olhos de quem as veem. Ahh, como essas ideias e essas práticas machucam aquelas que não conseguem se encaixar nos padrões de beleza idealizados pelo imaginário social! Assim, nossos corpos só são corpos, enquanto a nossa alma está em destroços. Mas, não é o corpo um veículo da alma? Ele traduz nossos estados de espírito, por mais que tentemos disfarçar. Corpo e alma estão ligados intrinsecamente. E, antes de ser uma dualidade instransponível é uma unidade existencial. Canta Roberto Carlos na música Como é possível? : “seu rosto me faz sentir, saudades do que não sei. Seus olhos me falam de coisas que eu tenho certeza que eu já escutei”. O rosto da amada, aqui representa a matéria corporal sagrada (porque é única e separada dos demais) e ele fala sem palavras, porque é expressão da alma traduzida no corpo, e que é capaz de alcançar a consciência do amante. Esta consciência é atemporal. O amante que ouve o que a alma da amada diz por meio do corpo (os olhos), tem certeza de que já ouviu aquilo antes. Antes. Antes, quando? Nossos corpos e almas são pra sempre. Estou esperando as defensoras da corruptibilidade do corpo me dizerem que estou errada em defender a santidade do corpo, alegando que ele é pecaminoso e que por isso, é decadente e acaba. Convido-as a lembrarem-se da famosa frase de Lavoisier que traduz a “Lei de conservação das massas”: “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Nossos corpos nos fazem existentes, pois são o nosso ponto de referência memorial. Quando lembramos de alguém que já morrer, não lembramos da sua alma, mas do seu corpo que era unido à alma. Mesmo que subjazam materialmente e pereçam, o corpo nos apropria da existência. Esta é a santidade do corpo: ele nos separa de todos os demais seres existentes e nos faz únicas. Mas, me resta falar da pecaminosidade da alma. Porém, não sem antes falar do que é o pecado. Pecado é consciência de transgressão. Só peca quem está consciente de que burlou as regras preestabelecidas. Adão e Eva pecaram quando transgrediram e tiveram consciência de que estavam nus. A consciência é conteúdo imaterial constituinte da alma, (aquela que é imortal). Então, desta forma, é alma que transgride e esta transgressão leva à evolução. Diz Nilton Bonder no livro A alma imoral: “A alma, diferente da definição popular, seria nada mais do que o componente consciente da necessidade de evolução, a parcela de nós capaz de romper com os padrões e com a moral. Sua natureza seria, portanto, transgressora e “imoral”, por não corroborar os interesses na moral (BONDER, 2018, p.14). A alma quer expandir. Mesmo que tenha dores, saberá que crescerá. Mas, o que quero aqui com tanta Filosofia é dizer que nós mulheres precisamos reconhecer que o nosso corpo é sagrado, porque nos foi consagrado ao serviço das nossas almas, que foram criadas com a capacidade co-criadora de transgredir os limites estabelecidos e ampliar as fronteiras. Que nossos corpos acordem para escutar o chamado à quebra das amarras que tentam conter a nossa alma feminina que é essencialmente revolucionária!

Ellen Maianne S. Melo

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